Agapâs me x fileîs me, o que aparenta ser, não é!
- Emerson Melo
- 1 de mai. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de fev.
Na cultura em que se vive, considerada por muitos teóricos como pós-moderna, percebe-se que o cristianismo cada vez mais conquista novos seguidores.

Sabe-se que nem sempre foi desta forma, desde o princípio, com o surgimento da fé cristã, os apóstolos, pais apostólicos e pais da igreja objetivaram expandir sua crença em Cristo, através de esforços, trabalharam arduamente para conseguir o avanço da fé que almejaram. Com o passar dos anos os resultados foram aparecendo, os cristãos conquistaram um forte aliado aproximadamente em 312 d.C., Constantino. Com o apoio deste novo adepto, a igreja cristã se consolidou, formulou seus credos e ratificou seus dogmas, isto aconteceu, pois a partir do momento que o império Romano passou a apoiar o cristianismo, a igreja parou de se preocupar com formas de subsistir ao massacre do império e se ateve ao desenvolvimento de sua doutrina.
A igreja cristã passou por mais duas fazes, de acordo com alguns estudiosos, determinante. Primeiro, a idade média, período este onde a igreja adquiriu maior poder de influência e decisão. Segundo, o surgimento da modernidade, nesta nova época houve outros desafios, tais como: o racionalismo, ateísmo, deismo, avanço cientifico, entre outros. Estas tentativas para por fim ao sagrado, no entanto, não foram suficientes.
Já na pós-modernidade, atualmente, os desafios enfrentados pela fé cristã são outros. Em poucos países se proíbe a mensagem cristã, este problema, que acaba sendo mais visível devido a política de certas nações esta sendo rompido pela insistência de muitos voluntários. Cada vez mais surge ONG’s e seminários para formação de missionários e líderes que supra a necessidade destes países. Contudo, o maior problema enfrentado no cristianismo pós-moderno não é a intolerância religiosa, pois cada vez mais o mundo caminha para o ecumenismo ou tolerância religiosa, mas a falta de interesse na interpretação dos textos bíblicos.
Esta despreocupação em explorar os textos o mais próximo do original possível, historicamente demonstra o motivo de diversos surgimentos e separações da comunidade cristã. Para exemplificar os argumentos supra-escritos, observa-se a passagem no evangelho de João, capítulo 21, dos versículos 15 ao 17. Existem várias interpretações desta passagem se esforçando para convencer o público cristão que, Jesus estava cobrando de Pedro um amor incondicional, perfeito e que o discípulo não conseguiu corresponder a afeição de seu mestre. Embasado nesta linha de pensamento se cria diversos comentários e sermões que se distanciam da história relatada pelo escritor, vejamos na prática (João 21. 15-17):
15. Depois de terem comido, perguntou Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me (agapâs-me), mais do que estes outros? Ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo (filô). Ele lhe disse: apascenta os meus cordeiros.
16. Tornou-lhes a perguntar pela segunda vez: Simão, filho de João, tu me mas (agapâs-me)? Ele lhe respondeu: Sim Senhor, tu sabes que te amo (filô). Disse-lhe Jesus: Pastoreia as minhas ovelhas.
17. Pela terceira vez Jesus lhe perguntou: Simão filho de João, tu me amas (φιλει᷆ς με, fileis me)? Pedro entristeceu-se por ter dito pela terceira vez: tas? E respondeu-lhe: Senhor, tu sabes de todas as coisas, tu sabes que te amo (filô). Jesus lhe disse: apascenta as minhas ovelhas.O texto usado como base se refere ao momento em que Cristo questiona Pedro. O escritor do evangelho de João estrategicamente monta seu discurso para defender a autenticidade divina da pessoa de Jesus. Destarte, começa seu relato com a defesa que o messias “logos” estava desde o princípio com Deus, ao continuar esboça sobre o ministério, milagres, morte, ressurreição e suas aparições. Após o relato destes momentos pós-morte, onde o messias reafirma seu poder e autenticidade divina, o escritor chama a atenção de seus leitores para um diálogo, isto se deu porque Simão Pedro era uma figura importantíssima para a administração eclesiástica do primeiro século. Seria complicado para o discípulo liderar, caso ele fosse, somente, lembrado como aquele que negou o Mestre três vezes.
Sendo assim, João mostra para a comunidade da época, que o mesmo apostolo foi restaurado por Cristo, tendo a oportunidade de afirmar, também, três vezes que amava seu Senhor. As palavras usadas nos vers. 15 e 16 quando Jesus se dirige a Pedro é , “agapâs-me” (amas-me), tradicionalmente se interpreta este verbo como o termo geral de amor, capaz de todas as significações, o amor incondicional. Já no versículo 17, o escritor relata que Jesus se dirige a Pedro com o verbo (φιλει᷆ς με, fileis me), geralmente traduzido como gostar de alguém, amar como amigo, beijar, e Pedro responde: φιλῷ.
Curiosamente em todas as citações usadas para descrever o diálogo, o escritor, quando expressa as palavras que Pedro se dirige a Jesus sempre com o vocábulo filô, abrindo oportunidade para interpretação comumente divulgada, onde o messias ressurreto pergunta ao amado discípulo se o amava com amor incondicional, o amor perfeito, mas Pedro sempre responde que o amava como amigo.
Teologicamente, quem tem a oportunidade de observar o texto, fazendo comparações com outras fontes e comentários, observa que esta “suposta” interpretação explicita através dos verbos gregos agapao e fileo, seguindo as regras básicas da exegese, não podem ser interpretadas apenas por seu significado, pois caso contrário teríamos um choque de informação e contradição dentro da própria narrativa que João tenta descrever.
1. Apesar de nossa fonte textual (os manuscritos mais antigos), ser escritos em grego, a língua original usada por Jesus Cristo no primeiro século era o aramaico, não o grego. Portanto quando o Messias se refere a Pedro, ele não usou os verbos gregos agapao ou fileo.
2. O escritor estrategicamente compilou seus textos a fim de reforçar e guardar a tradição recebida diretamente de Cristo, uma vez que os discípulos estavam envelhecendo, outros sendo martirizados, e o cristianismo sofrendo pressões de outras ideologias filosóficas.
3. Um dos objetivos é mostrar que Pedro teve uma segunda chance para pontuar seu amor por Cristo, pois ele o negou antes da crucificação. Não há sentido Jesus usar o verbo agapao, “amor incondicional”, se o motivo é restaurar a confiança do discípulo, tanto consigo mesmo, como com a comunidade cristã.
4. Praticando o princípio básico da hermenêutica, além de pesquisar todo contexto da passagem, sua influência histórica, política, social e religiosa, compare outros versículos onde outros escritores da bíblia e o próprio escritor da passagem abordada, usa o termo fileo ou filo para referir-se ao amor que Deus tem com o homem:
· Mt 10.37 Aquele que ama seu pai ou sua mãe acima de mim não é digno de mim (filon), termo derivado da raiz filo. O escritor afirma s amar a Deus com amor Filon.
· Jo 5.20 Porque o Pai ama ao filho, e lhe mostra tudo o que faz. (filei), passagem que retrata o amor de Deus por Cristo.
· Jo 11.3 Senhor, está enfermo aquele a quem amas. (fileis), as irmãs de Lazaro avisam a Jesus que seu amigo estava enfermo.
· Jo 16.17 Porque o próprio Pai vos ama. (filei), referência do amor de Deus aos ouvintes de Jesus.
· Jo 20.2 [...] e com o outro discípulo a quem Jesus amava. (filei). · 1 Co 16,22, entre outras passagens, o termo é usado aproximadamente vinte e cinco vezes. Já o verbo agapao ou agape é usado para descrever o amor entre pessoas terrestres, entre pais e filhos, como mostra os versículos seguintes: Mt 5.43, 44, 46; Mt 19.19; Mt 22.39; Mc 12.31, 33; Lc 6.27, 32, 35; Lc 11.43; Jo 3.19; Jo 11.5, Jo 12.43; Jo 13.34; Jo 15.12, 17; Rm 8.28; Rm 13.8, 9; 2 Co 11.11, dentre outros.
Portanto percebeu-se que o escrito joanino se vale de sinônimos diferentes para expressar a mesma palavra. Por maior que seja a boa vontade em interpretar o texto e fazer distinção entre os verbos gregos, é incorreto e desrespeitoso contra o pensamento original do escritor, porque o sentido do diálogo entre Cristo e Pedro é a restauração do discípulo na comunidade religiosa local.
Referência Bibliográfica
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