Ismael quer brincar
- Emerson Melo
- 16 de set. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 12 de fev.
O texto de Gn 21.8-21 segue um padrão frequente no livro. Há muita linguagem narrativa e pouca fala direta. As frases são breves e não raro se constituem tão somente da fórmula verbal.

Isto tem um porquê: textos com muita fala direta tendem a querer expressar a diversidade de ideias e argumentos; conceitos tendem a emergir com muito menor intensidade em narrações, o que permitem diversificar gestos e ações. Veja o verso 14, por exemplo. Há nada mais nada menos que sete verbos em um só versículo!
Entramos na narrativa no meio da cena. E o cenário é a festa familiar para Isaque, por ocasião de sua desmama. Abraão dá um “grande banquete” A tradução é bem propícia visto que, no hebraico, o termo contém o verbo “beber” (מִשְׁתֶּה). Mas logo em seguida, a cena é de conflito. No v. 10 Sara exige a ‘solução’: “expulsa”, e, no v. 14a, o desejo é realizado. E qual o motivo da crise dentro da família? Ismael está brincando! Uma tradução mais literal do v.9 vai nos dizer: “E Sara viu o filho da egípcia Agar, que dera à luz a Abraão, brincando”. Neste “brincar” é que reside o problema para Sara.
Nossas traduções em português para este verso mostram Ismael “caçoando de Isaque”, “zombando de Isaque” . Desta vez, a culpa não é dos tradutores. É que boa parte do texto do Primeiro Testamento é vertido a partir da LXX, e lá, há um acréscimo: “com Isaque, seu filho” (μετὰ Ισαακ τοῦ υἱοῦ αὐτῆς). Trata-se de uma emenda explicativa dos tradutores gregos que tentam entender o “brincar” a partir de uma relação entre Ismael e Isaque, que poderia estar humilhando a Isaque. E isso, por sua vez, seria a razão para a atitude de Sara em “expulsar” Agar com seu filho. Não! O texto hebraico não admite tal explicação! Até porque, falta este adendo na tradição do texto original. A atitude de Sara contra Ismael não está em alguma ofensa ou agressão contra Isaque. Reside simplesmente no “brincar”. O ato de “brincar” de Ismael traz um conflito para Sara – e só para Sara! – a herança. Ismael não pode herdar com Isaque (v.10), afinal, a partir da sua ótica, é Isaque quem deve brincar (herdar), pois seu nome já diz isso.
O nome Isaque está vinculado a “brincar” (צחק), em hebraico significa: “ele brincará/ele sorrirá” (יִצְחָק) . Para Sara, não pode haver semelhanças entre Ismael e Isaque. Na medida em que ambos podem “brincar”, ambos poderiam “co-herdar”. E isso, para Sara, e, em seguida, para Abraão é impossível. A sentença para os dois – Agar e Ismael – não é só separação, mas a morte. Morte, sim! Porque expulsá-los de casa é lança-los em Beerseba, região de terras desérticas onde a narrativa se desenrola (v.14), é exigir a pena de morte. A concretização do fato aparece no v.14. A arte literária na composição dessa narrativa é simples, mas eficiente. Abraão se “levanta cedo”. “Dá” a Agar pão e água, e lhe põe a criança “sobre seus ombros”. E a “despede”. A cena nos dá calafrios!
Mas esta sequência é interrompida pelos v.11-13. Parece que o redator final nos aponta o método histórico-salvífico, em termos teológicos, para justificar a ação de Abraão. É aqui que a filiação de Ismael em Abraão aparece. Ele só é tratado de filho de Agar. A intenção parece ser a de lembrar que Isaque é afirmado, mas o espaço de Ismael não é negado.
E a escrava se foi. Ela e seu menino. E aos poucos, o seu “andar” carregando Ismael se transforma em um “vaguear”/”andar” errante”, sem água, em pleno deserto de Beerseba. Mas a provisão termina. O desespero vem. Ela lança o menino à única proteção daquele lugar: “debaixo dos arbustos”. Agar, que começara andando (v.14b), termina suas ações no desespero de gritos e ‘choro’; no começo da cena carrega seu filho, no final só lhe restam lágrimas.
É neste momento que entra novo personagem na história: “Deus (אֱלֹהִים) ouviu a voz do menino”. Este é o título de tudo, pois “ouvir” é também realizar. E quando Deus ouve, as realidades se desfazem. Com uma só frase de poucas palavras, a dor se vai. O que se segue é apenas detalhamento. O mensageiro de Deus chama Agar “a partir do céu”. Parece que está mais distante que o próprio Deus!
O nome de Ismael tem a ver com o “ouvir” de ‘El/Deus (יִשְׁמָעֵאל). Fora o próprio Deus quem o nomeou assim, em outra situação em que Ele não somente ouviu, mas viu. No capítulo 16, Agar está fugindo de sua senhora, Sara que a havia ‘golpeado’ (וַתְּעַנֶּהָ). No meio do deserto, na fonte d’agua (עֵין הַמַּיִם – no olho d’água) o mensageiro do Eterno a encontra, faz-lhe promessas, dá nome ao seu filho (vs.7-12). Ali no olho d’água o Eterno viu a aflição de Agar, daí a egípcia dar nome a Deus: ‘El Roi` (Deus que me vê), pois Deus não ouve quem escraviza, ouve, sim, escravas.
Deus ouve – este é o coração da narrativa. E não somente ouve, também vê. E não somente “vê”, mas também abre a visão. Para que se possa “ir”, é preciso olhos abertos. Agora, com os olhos abetos, Agar pode ver o poço de água. Na realidade, este poço sempre esteve lá, perto dela, mas “seus olhos” não viam.
Mas a surpresa é que Deus ouve! Ele justamente escuta o menino quando ninguém mais quis ouvir, nem mesmo sua própria mãe. Eis o que importa nas Escrituras: os ouvidos de Deus estão postos nos mais perseguidos. Aí a teologia se faz aguda na humanização. Ao se humanizar, Deus se diviniza. Aí é que é Deus!
Autora: Rosângela Gonçalves



Comentários